Dia 17 de outubro de 2019, estúdios da BBC Three, no Reino Unido. Mais uma drag queen leva Sashay Away. Como é de praxe neste programa, uma mensagem no espelho encerra o final de um sonho: “Vida longa às biscates originais de RuPaul’s Drag Race UK! Vocês são todas incríveis. Hodge Podge para sempre. Beijos”.
A autora das palavras acima é Vinegar Strokes, que se despediu da competição em “Posh on a Penny”, episódio três desta versão inglesa, centrado em um desafio de costura no qual as rainhas foram incumbidas de criarem roupas feitas com materiais vendidos por Raven no porta-malas de um carro.
Vinegar, ao lado de Cheryl Hole e Sum Ting Wong, acabaram como as três piores do dia. Cheryl teve mais sorte e assistiu, do fundo do palco, a dublagem de Vinegar contra Sum, ao som de “Would I Lie to You”, da banda The Eurythmics. Vinegar é eliminada e, neste exato momento, um ciclo se encerra, porém, o que veio antes dele? Como a história desta drag começa? É o que você descobre agora na Who’s That Queen?
Daniel Jacob é a mente criativa por trás de Vinegar Strokes. Nascido no dia 21 de agosto de 1984, este leonino se relaciona com a arte desde os primórdios de sua vida. Ainda criança, uma professora de música notou que Daniel conseguia cantar. Ao constatar seu potencial, lhe recomendou procurar por aulas de canto, que aconteceriam em paralelo aos primeiros shows escolares em teatros juvenis.
Egresso de uma família cujos pais se separaram, em Enfield, distrito de Londres, na Inglaterra, local que é seu nascedouro, Daniel desde cedo se viu inserido em uma geração em que você é excluído se você for diferente, principalmente quando estamos falando de alguém que é gay, negro, gordo e “se veste como mulher”. No caso, ele mesmo.
Independente do cenário em que estivesse inserido, Daniel sempre alimentou o sonho de ser um popstar, de conhecer os holofotes da televisão. Em sua imaginação fértil, ele estrelaria EastEnders, exibido desde 1985, pela BBC One; ou brilharia no longa-metragem “O Rei Leão”, entretanto, como o mundo dá voltas, em uma delas uma surpresa lhe pegaria de jeito.
Certa vez, Daniel experimentou se maquiar, algo que nunca havia feito até então. Em seguida, incerto sobre o resultado, enviou uma foto a um amigo para ter uma segunda opinião. Ele disse: “Tá bom, seios de vinagre”. A palavra Vinegar ficou em sua cabeça, mas faltava algo. Uma busca no Google e, tcharan: eis que surge Vinegar Strokes. Uma curiosidade: este nome também é um trocadilho que significa a expressão facial que os homens fazem antes da ejaculação.
Brincadeiras à parte, a vida de drag para Vinegar começa ao vencer a competição “Drag Idol Heat 1”, realizada nos bares de Londres. Sum Ting Wong, sua irmã de temporada, compete junto com ela. Ambas iniciam suas carreiras como drag queens no mesmíssimo dia.
Já com um nome de guerra e aos 31 anos de idade, no começo de maio de 2015, Vinegar começa, de fato, a se montar. A segunda montação completa acontece em seguida. Neste dia, encontra Jade, uma das vocalistas do Little Mix.
Estreia feita, é chegada a hora do primeiro evento pago de Vinegar, que acontece no Halloween. Um amigo a convida para fazer um show de comédia em seu bar, só que com um adendo: caracterizada como bruxa. Ela recusa sem hesitar e ele oferece £75 (equivalente hoje a R$ 508,10). Proposta reconsiderada, que horas você precisa de mim? Vinegar Strokes nasceu oficialmente.
Mais a frente, em seis de novembro de 2017, Daniel entra no elenco de “Everybody’s Talking About Jamie”, musical baseado em um documentário televisivo e seu primeiro trabalho no West End. Ele estava em um trem quando leu o e-mail informando que havia ganhado o papel. Na mesma hora começou a gritar de felicidade pela meta alcançada.
Na sequência, em 14 de janeiro de 2018, ele conhece uma pessoa que, no futuro, teria seu destino em suas mãos: Michelle Visage fora assistir ao espetáculo e aproveitou para cumprimentar o elenco, inclusive Daniel, que sonhava participar de RuPaul’s Drag Race UK.
Ele estava em um café quando recebeu a ligação da produção do programa confirmando que estaria no programa. Nesta hora, Daniel saiu correndo e gritando. No meio da euforia, percebeu o tamanho do próprio feito: sim, estava sendo validado como artista.
Reflexões deixadas de lado, uma competição estava a espreita, para a qual Vinegar se preparou em termos de roupas a serem utilizadas e outros itens indicados pela produção, todavia, ela garante que mentalmente não existe um manual para ajudar a passar por esta experiência. A câmera ligou e você fica cego, literalmente, porque tudo pode acontecer.
Mesmo no meio da alta carga de competitividade, existe espaço para a irmandade. Sum Ting Wong reforçou a parceria com Vinegar, que se identifica com ela pelo senso de humor e por serem basicamente dois caras de peruca que querem diversão e performance. Os nervos de ambos foram testados logo no primeiro episódio da temporada.
Em três de outubro de 2019, em “The Royal Queens”, enquanto Sum ficou entre as três melhores no desafio que pedia que as drags apresentassem dois looks (um homenageando a Rainha Elizabeth II e outro sua cidade natal), Vinegar amargou seu primeiro bottom dois ao lado de Gothy Kendoll. No lip sync de “New Rules”, da Dua Lipa, muito mais do que garantir um merecido Shantay, ela se livrou da maldição de virar a primeira Porkchop do Reino Unido.
No episódio dois, “Downton Draggy”, Vinegar garantiu sua inclusão entre as melhores após um desafio principal de atuação. No terceiro episódio, justamente aquele que exigia um de seus pontos fracos, a costura, a competição acaba para ela que, em suas próprias palavras, afirma que prefere ir para casa porque se deu mal no que não é boa em vez de ser eliminada quando deveria ter vencido.
Sobre a fatídica roupa que lhe levou a amargar entre as piores, Vinegar conta que saiu do palco e a jogou direto no lixo. Esta criação representa o começo e fim de uma jornada de três episódios que começara com um desafio de design e terminara com um de criação de look. Somente no meio do caminho Vinegar pôde mostrar o seu melhor, e não foi completamente: muito da comédia física, frases de efeito e improvisos que fez foram eliminadas do corte final na edição, logo, o público não a conheceu como deveria.
Em paralelo a este cenário, Vinegar sentiu na pele o tempo limitado para que as drags se montem para a passarela. Uma hora e meia é o prazo dado a elas. Em desafios que exigem mais de uma roupa, este tempo é ainda mais reduzido. Some-se a isto a pressão que esta drag sentia por suas competidoras terem mais lantejoulas brilhantes que ela. Finalizando o capítulo Drag Race, Vinegar tem uma tristeza para chamar de sua. Chama Snatch Game. Nele ela faria Sandra Martin, estrela do Gogglebox.
Cerca de oito ou nove meses depois da exibição de sua temporada, nem mesmo a própria Vinegar conseguia acreditar no que via ali. A mudança é grande, tanto esteticamente, quanto internamente. Espirituosa, ela analisa sua participação ali hoje em dia e não se admira com o desfecho de sua corrida. O importante é que uma evolução aconteceu e abriu espaço para novos projetos, entre eles, a música.
Antes do Drag Race, Vinegar já tinha gravado música no formato independente. Com a exposição gerada pelo programa e a base de fãs que vem junto, ela uniu o útil ao agradável: alimentar o público e sua própria vontade de cantar, o que justifica seus dois singles próprios lançados até hoje: “Camp!” e “Surrender”, além das faixas “Filthy Gorgeous”, “Can’t Get You Out Of My Head” e “Bullet Proof”, lançadas em 17 de dezembro de 2020, com a banda “Vinegar Strokes & The Morning Afters”.
Apesar desta pequena, mas promissora discografia, um álbum não está entre os planos de Vinegar. Como não é uma cantora contratada por uma gravadora e acredita que é mais interessante lançar singles soltos sólidos, prefere trabalhar músicas individuais, cada uma a seu tempo. Ainda falando de música: no último dia quatro de janeiro de 2020 Vinegar deixou o elenco do musical “Everybody’s Talking About Jamie”. Nada de anormal para quem faz teatro desde os 13 anos de idade.
Respalda por bons anos de experiência, desde 2017 Vinegar se orgulha de poder fundir teatro com drag. Ao lado do cabaré, são estas as paixões que fazem seus olhos brilharem. Para quem começou “apenas” como ator, hoje paira no ar a sensação de que, sim, drag foi a melhor coisa que escolheu fazer. Por si mesma e pelos outros, pelo mundo.
Orgulhosa de ser da classe trabalhadora, Vinegar celebra suas origens e horas e horas de trabalho duro. Tudo isto é usado em sua drag, uma drag marcada pela comédia stand-up e que canta de um jeito peculiar, que sabe que a frase “Orange Is The New Black” está desatualizada. O correto é: Drag Is The New Black, segunda ela mesma aponta.
Consciente ao pé da letra, Vinegar já chegou a fazer um show em Guildford, uma pequena cidade inglesa, no qual lhe disseram que 500 pessoas estariam presentes, mas só 27 apareceram. Ela também já performou para mais ou menos cinco pessoas e mesmo assim foi um grande show, então, números de plateia não a impedem de dar tudo de si em cena. Não mesmo.
Vinegar considera-se uma fusão de Sandra Martin do Gogglebox com alguma personagem de EastEnders ou, vá lá, uma mistura de Tina Turner, Lizzo e Kat Slater. Esta figura ímpar também é chegada em homens carecas e adoraria acariciar a cabeça dos atores Patrick Stewart e Stanley Tucci.
Aos 36 anos, Vinegar Strokes pode acrescentar mais uma vitória a sua coleção: ela representa todas as pessoas que já foram obrigadas a passar pela porta dos fundos e, não suficiente, mostra as pessoas que, para ser uma atriz conceituada, na vida e nos palcos, é preciso muito mais do que um diploma. É preciso coragem.
Dito isto, leia abaixo, na íntegra, a minha entrevista exclusiva com Vinegar Strokes. Confira!
Música é algo que me faz seguir uma drag queen. Com a primeira temporada de RuPaul’s Drag Race, em 2009, a drag music começou a ser vista de forma diferente, ensaiando uma ida para o mainstream. Você acha que ela seria a mesma sem o programa de RuPaul?
Não acho que a drag music seria diferente se o Drag Race não existisse. Drag e música trabalharam juntas por anos, mas acho que o Drag Race ajudou a tornar a música pop original, divertida e algo que os amantes da música podem levar a sério.
“Camp!”, seu primeiro single, foi lançado em 17 de outubro de 2019. Depois de todo este tempo, como você analisa sua estreia musical
Eu amo Camp! Eu me diverti muito fazendo isso e adoro interpretá-la. É uma música inspiradora e inclusiva e é definitivamente o presente de volta para todos que me apoiaram.
Se você pudesse formar um grupo pop de garotas com mais quatro drag queens negras, quem você escolheria e por qual motivo? A primeira banda de garotas negras do mundo dos drags!
Tia Kofi – a rapper
Monét X Change – a mãe
Heidi N Closet – a fofa
Tynomi Banks – a gostosa
Quando você relembra do dia da gravação do videoclipe de “Camp!”, quais são os seus três momentos preferidos por ordem de importância?
1°) Performando com meus amigos.
2°) O vestido dourado que eu usei.
3°) Ser criativo e me divertir.
Quase um ano após seu primeiro single, você lançou “Surrender” em quatro de setembro de 2020. Por que esse espaço de tempo e como foi o processo de composição? Você trabalhou com muitos compositores de “Camp!” novamente.
O segundo single seria lançado mais cedo, mas demorou algum tempo por causa do covid. Aliás, como está a situação do coronavírus aí no Brasil?
Terrível, número de mortos altíssimo, mas não vamos baixar o astral, continue
Eu queria lançar uma música sexy de empoderamento que você pudesse dançar, mas se sentir empoderado. Trabalhei com o mesmo produtor de CAMP! Bison Rooms e Tia Kofi, da segunda temporada de RuPaul’s Drag Race UK, ajudaram com a letra.
Sobre o videoclipe de “Surrender”: o que não foi mostrado nele que as pessoas achariam divertido assistir?
Apenas muitos looks engraçados de pessoas andando enquanto eu filmava o vídeo nas ruas de East London.