Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil, 1970. Estamos em plena ditadura militar quando Glaci de Oliveira e Silva dá à luz, no dia três de novembro, o menino André de Oliveira e Silva. Guarde bem este nome, caro leitor, porque ele é o protagonista da história que agora eu vou lhe contar.
Nascido na capital nacional dos calçados, André conheceu os impropérios da vida desde cedo. Seus pais não sabiam lidar com sua sexualidade, o que fez com que sua mãe o levasse ao psiquiatra. Nesta época, nem preciso dizer que a homossexualidade não era vista como algo bom, para dizer o mínimo. Aliado a isto, o pai abandonara a família quando ele tinha dez anos de idade.
Neste meio tempo, ao lado das dúvidas que surgiam e o estranhamento de ser uma pessoa negra em uma terra dominada pela branquitude, uma pessoa em especial cumprira, com louvor, o papel de tábua de salvação para André: sua amada e companheira avó Catarina, testemunha ocular de seu crescimento como ser humano. Ela deu para o neto o apoio, até então inédito, para ele simplesmente viver como bem entender. Algo importante para o que o aguardava em seguida.
Em 1985, aos 15 anos, André se muda de Novo Hamburgo para a capital do estado, Porto Alegre. Três anos mais tarde, em 1988, ele experimenta, além do gosto da maioridade vinda com seu aniversário de 18 anos, o sabor de uma profissão que o acompanharia até os tempos de hoje: o transformismo.
Por sugestão de Agio La Porte, André fez um show na festa Broadway Night, “a Josefine Baker perfeita”, segundo ele. Uma semana depois, quem estava no palco? André, o próprio. Quer dizer, não exatamente o André, mas sim a Mademoiselle Catherrine Leclery.
O primeiro nome é uma homenagem ao amor de sua vida, vovó Catarina. O sobrenome faz referência à socialite Regina Maria Rosemburgo Lécrery, falecida no dia 11 de julho de 1973, em um trágico acidente de avião onde 122 pessoas morreram e apenas 12 viveram. Uma curiosidade extra: Gérard Lécrery, um dos maridos de Regina, foi dono da maior indústria de calçados da França. André nasceu na cidade brasileira conhecida pelo mesmo ramo. Mas voltemos ao nosso assunto principal.
O que acontecera ao sabor do acaso para Catherrine acabou virando rotina: competições passaram a fazer parte de sua agenda, como a Pop Gay, da qual participou nove vezes seguidas. Esta experiência acumulada a ajudou em duas situações futuras: em 1992, quando vencera o Miss Brasil Transformista, e outubro de 1995, quando uma viagem internacional mudaria seu destino para sempre.
Através de um amigo, apoiador e incentivador, André ganha passagens para passar férias em Düsseldorf, Alemanha. Glaci, sua mãe, lhe acompanha. Entre um passeio turístico e outro, Catherrine conhece o ator e comediante alemão Tom Gerhardt em uma festa brasileira. Ela não sabia que ele era um fã do Brasil e, a princípio, achava que estava sendo cantada quando, na verdade, Tom a queria para trabalhar no teatro.
Em seguida, Catherrine viu os valores de contrato e os calculou mentalmente. A decisão já estava tomada: “Diga ao povo que fico”. Sua mãe retorna para Porto Alegre, onde mora atualmente, e Catherrine trabalha com Tom em diversas turnês teatrais, como “Full The Disco”, “Full Pervet!”, “Au Weia” e “Naked Without Color”. Uma boa prévia de como seria sua estadia em solo alemão.
Em termos de trabalho, Catherrine não pode reclamar. Nesta fase alemã, vivendo em Colônia, ela prestou serviço para locais distintos como sua drag, a exemplo do Piccola L’Originale & Piccola Aperitivo, restaurante italiano, no qual trabalhou de 2014 à 2016; o IVORY Lounge, casa noturna; e, por fim, no OSCAR im APROPOS, loja conceito e restaurante onde entrou no dia 13 de janeiro de 2017 e permanece até hoje.
Neste trabalho e nova fase de vida, Catherrine coleciona, além de encontros com artistas e celebridades internacionais como Paulo Coelho, Rosario Dawson, Kylie Minogue, Valerie Morris Campbell (mãe da Naomi) e Antonio Banderas, histórias não tão boas assim de lembrar, como convém a qualquer profissional em atividade.
Certa vez, um diplomata chegou para falar com Catherrine e disse, em um tom nada amistoso: “Eu sou diplomata”. Ela respondeu: “É mesmo? Que bom, eu sou artista”. Ele prosseguiu: “Eu quero aquela mesa”. Catherrine finalizou da seguinte forma: “Então eu vou tentar, numa diplomacia, tentar falar para você, diplomaticamente, que eu não tenho essa diplomata mesa. O senhor me entendeu?”. Catherrine afirma que ele “não entendeu bulhufas nenhuma”.
Fora as emoções do novo trabalho, 2017 marcou Catherrine por outra razão em especial. Através do Facebook, André descobre a existência de dois meio-irmãos por parte de pai, filhos de outro casamento. Eles chamam Adalberto Junior e Flávia Martins.
O rapaz vive em Porto Alegre. Ela, em Sidney, Austrália. André conheceu Flávio pessoalmente em Colônia, na Alemanha. O encontro com Flávia ocorrera no Brasil, em 2018. “Você não pode imaginar como é bom para mim saber que eu tenho irmãos tão maravilhosos. Sou muito grato por isso”, afirma André nas redes sociais.
E foi através delas, mais especificamente do Instagram, que Catherrine recebeu a oportunidade que seria o grande salto em sua carreira: por meio de uma pesquisa, ela fora abordada para participar da primeira edição do reality show Queen of Drags, apresentado por Heidi Klum, Conchita Wurst e Bill Kaulitz.
Heidi Catherrine conhecera durante uma gravação para o programa Germany’s Next Topmodel. Conchita ela foi apresentada em 2012, durante o Life Ball, o baile da vida contra à AIDS, em Viena. Bill e Olivia Jones também não lhe eram nomes estranhos, afinal, estaria logo, logo com eles novamente.
No dia 11 de setembro de 2018, Catherrine começa, de fato, as gravações da temporada. As aspas aqui ficam pela importância histórica: antes do Queen of Drags, somente um show baseado em drags havia sido transmitido na Alemanha: o Die Travestie-show, na RTL, em 1997.
No primeiro episódio, Catherrine quase vence, mas fica no segundo lugar, com 35 pontos. No episódio dois, amarga o seu primeiro bottom três. Em seguida, garante seu primeiro win, no terceiro episódio, com uma Pocahontas que emociona até os mais durões. Em sua quarta semana Catherrine volta à vice-liderança para, infelizmente, ser eliminada por um ponto no penúltimo episódio da temporada.
Após a experiência neste programa, Catherrine conseguiu expandir ainda mais seu currículo: suas apresentações já percorreram a Europa toda, Nova York, Buenos Aires, Marrocos e, pasme, até o Kosovo, local onde foi contratada para fazer uma festa de réveillon. Mesmo com três seguranças, ela executou o trabalho completamente apavorada. Aliado ao palco, Catherrine também já fez cinema, televisão e passarela. Falta alguma coisa? Falta.
Em 2019, quem foi a primeira drag queen a dançar no carro de abertura em um desfile de Carnaval no Rio de Janeiro? Ela mesma, a rainha que sabe que uma dama só está pronta para a guerra com um Louboution. Catherrine volta ao Brasil todo ano devido à folia de Momo. Alcione, uma das rainhas da música popular brasileira, sempre a convida para desfilar pela Mangueira.
Com esta sambista, Catherrine tem uma história que será a última que eu te contarei aqui para ser a primeira que você lembrará quando acabar de ler este texto: desde a infância, André dançava e escutava com sua avó as músicas de Alcione. Um dia, a maranhense apresentou-se em Colônia. André entrou em contato com a produção e disse que queria muito agradecê-la e fazer uma foto. Coisa rápida, de dois minutos.
Neste contexto, a equipe dela teve acesso a uma matéria de página inteira com fotos de Catherrine como homem e drag ao lado de atores de Hollywood. A produção fala com Alcione e comunica o pedido de André mostrando esta publicação. Alcione responde sem hesitar: “Me traga esse menino agora, ele sabe exatamente o que eu preciso, cabelo, maquiagem, etc”.
No dia seguinte, Catherrine recebe a confirmação de que Alcione a espera no hotel, às 11 horas da manhã. As duas almoçaram juntas e a intuição espiritual apenas reforçou: Catherrine acredita em resgates de vidas passadas e crê que tem um deles com Alcione, o que explicaria sua relação com ela.
Crenças espirituais a parte, André tem o benefício de olhar para o caminho que trilhou até aqui e orgulhar-se: são 50 anos de vida, 32 de carreira, 25 deles na Alemanha, e 17 de um casamento terminado em 2010, fora o sentimento de pertencimento gerado por Colônia, uma cidade de muitas culturas, aberta ao novo e que a abraçou desde o princípio. E é de lá que ela me concedeu a entrevista exclusiva que você confere agora.
Fico impressionado com a manchete do G1 São Paulo sobre a sua participação no carnaval deste ano: você desfilou pela “Tom Maior” em um carro homenageando Marielle Franco, usou uma fantasia que custou 40 mil reais e pesava 12 quilos. Militância e elegância são seus locais de fala? Brincadeiras a parte, Marielle ficaria orgulhosa, hein?
Me sinto muito orgulhosa e feliz pelo convite da Tom Maior para desfilar no último carro homenageando à Marielle. Eu acredito que tenho algumas coisas em comum com ela. Sou negra, pobre e homossexual em um país que não há justiça, onde os maiores ladrões estão em Brasília, aí eu me pergunto: como pode um país desse andar para frente e ser civilizado? Por isso que resolvi deixar o Brasil há anos e pelo jeito estava certa, porque até agora vejo que continua a mesma coisa. Quanto a elegância, acredito que é algo que você nasce com ela. Acredito que todas as pessoas são elegantes, você só precisa aprimorar a sua. Para mim a elegância maior é a educação e a simplicidade.
Você tem uma relação especial com o carnaval brasileiro, a ponto de sempre vir para cá nesta época. Imagine que você tem uma escola de samba e ela desfilará homenageando as grandes drag queens brasileiras. Quem seriam elas, Catherrine? Por qual motivo?
Eu realmente amo o carnaval brasileiro e com certeza é o maior espetáculo da terra. Quanto as drags brasileiras que mereceriam ser homenageadas, na minha opinião seriam: Marcia Pantera, Silvetty Montilla, Thália Bombinha, Alexia Twister, Pabllo Vittar, Gloria Groove, Oxa, Dandara Rangel, Bagagerie Spielberg, Leonora Áquila, Nani Labelle, Vanessa da Silva, Meime dos Brilhos, Lorna Washington, Rogéria e, lógico, Catherrine Lecrery. E o motivo seria a história e a trajetória dessas artistas maravilhosas, com muito talento, conteúdo e uma trajetória artística incrível.
Uma drag brasileira famosa já me disse que um ator transformista pode ser drag, mas nem toda drag é transformista. O que você acha disso?
Eu acho que eu conheço essa drag brasileira muito bem, risos.
Pelo simples fato das drag queens não terem vivido a época das transformistas, uma época bem difícil de acesso a tudo, sem internet, sem boas maquiagens, perucas sempre caríssimas, sapatos de numeração grande não existiam, mas uma transformista se atualizando e se modernizando pode se transformar em uma maravilhosa drag queen. Uma transformista modernizada e atualizada com certeza apresentaria um show bárbaro e muito criativo, infelizmente, todas fazem hoje em dia a mesma coisa: entram no palco com um manto, tiram o manto, soltando o cabelo e batendo o cabelo, aí eu pergunto onde fica a dança, dublagem e criatividade de encantar o público? Talvez esteja errada, mas adoraria ter uma resposta.
Se você pudesse montar um grupo pop só de garotas com mais quatro drag queens, quem você escolheria? Por que?
O grupo seria simples, risos. Gisele, Naomi, Adriana Lima e Heidi Klum. As drags seriam Catherrine Leclery, Marcia Pantera, Nani Labelle e Pabllo Vittar, simplesmente pelo divertimento e, mais popular que isso, não precisa, né?
Tempest DuJour, de “RuPaul’s Drag Race”, disse certa vez que Deus não criou os vaga-lumes e as drag queens para o dia, porque é a noite que eles brilham. Levando em conta que muitas drags trabalham no turno da manhã e tarde em diversos segmentos, este pensamento não está ficando ultrapassado?
Esse pensamento para mim está ultrapassado. Deus criou a drag queen para brilhar o dia todo e o tempo todo. Eu mesma trabalho manhã, tarde e noite e te garanto: brilho sempre o dia todo.
Vou te propor um desafio agora mesmo: conta para as Dragliciosas uma história com a Alcione tão boa quanto essa do vídeo abaixo? Uma entrevista ótima para o Café com Selinho.
Uma das histórias maravilhosas com a minha amiga Alcione foi no aniversário dos 70 anos que ela não me convidou, ela me intimou a estar no Brasil para a sua festa. Então lá fui eu ficar somente 2 dias no Brasil para comemorar e festejar os 70 anos da minha amiga Marrom. Rimos e dançamos muito, foi maravilhoso. Viva Alcione, maior cantora popular do mundo.