RuPaul’s Drag Race é um fenômeno cultural que nos encanta desde que foi lançado em 2009. Por ser um fenômeno cultural, obviamente ele impacta na sociedade, assim como recebe seu impacto. E por conta disso é marcante os elementos sociais que são reproduzidos pelo show e por seu público.
Ao mesmo tempo que temos a maravilhosa representatividade gay, negra, latina, gorda e outras no show, é com tristeza que percebemos que o programa incorre em opressões também, tipo transfobia e machismo, ao impedir que mulheres trans e cis participem da competição.
Contudo grande parte do problema de Drag Race vem de sua própria fã base, que mesmo sendo composta em sua maioria por homens gays, prova não ter nenhuma empatia as outras minorias que o show apresenta, mostrando que ser oprimido, não impede ninguém de oprimir. O que deveria ser uma lição, a opressão que sofrem, acaba se tornando um combustível para perseguirem àqueles que não desfrutam dos mesmos privilégios. E o pior é que o fandom de Drag Race usa da desculpa do “é só shade” ou “é só minha opinião” para falar barbaridades contra as rainhas, especialmente as negras, a fim de camuflar seu racismo, transfobia, xenofobia e por aí vai.
Já se passou metade do All Stars 4, e a competição tem se revelado cada vez mais acirrada, com o top 7 – Latrice, Manila, Monet, Monique, Naomi, Trinity e Valentina – mostrando que são queens muito boas, todas capazes de levar a coroa para a casa. O show tem exibido semanalmente entretenimento de qualidade e em vez dos fãs simplesmente curtirem, eles gastam seu tempo livre atacando e perseguindo as queens negras.
Foi preciso que Valentina usasse suas redes sociais para pedir aos seu “fãs”, uma das maiores fã bases dessa temporada, que deixassem suas companheiras negras de competição em paz. Ela defendeu Monique do ódio deles e ponderou ao dizer que não pode afirmar que essas pessoas são suas fãs, pois essa não é a postura esperada de quem gosta dela e de sua arte drag. E mesmo com tal posicionamento os ataques não pararam. É preciso ressaltar que Valentina também é vitima de muito ataques virtuais, tudo porque muitos não entendem a personagem que ela criou para essa temporada, bem digna de uma vilã de novela mexicana. Para quem já odiava a queen, ver seus devaneios é a desculpa perfeita para atacá-la à vontade.
Então chegamos às queens negras
Monique tem tido um dos melhores desempenhos desse AS4, ainda assim leio diariamente que ela é fraca, que não deveria estar ali, que está sendo arrastada. As mesmas ofensas recaem sobre Monet, que embora tenha um desempenho irregular, prova que merece seu lugar na competição, ainda assim lhe sobram ofensas e ataques. Eu perdi as contas de quantas vezes li que as duas não merecem estar ali, que são péssimas artistas, mesmo mostrando desempenho melhor que de outras competidoras. Naomi Smalls, que mesmo tendo destaques nos desafios, vinha sendo apagada pela edição, recebeu a alcunha de arrastada, que está ali só pela sua magreza.
Por fim, temos Latrice Royale, uma das rainhas mais amadas da história de Drag Race que em poucos episódios passou a ser odiada. Nesse All Stars 4 a queen, de fato, parece não ter evoluído muito sua arte desde suas participações anteriores no show, o que não deveria ser problema, pois ela continua sendo uma lenda que inspirou e inspira muitos artistas drags. Latrice até então sempre foi usada como token* pelo fandom de Drag Race (“Racista eu? Nunca, eu amo a Latrice”), mas agora passou a ser uma das mais novas drags odiadas do show, tudo porque ela tem mostrado seu lado mais venenoso que o grande público não conhecia. Latrice não curtiu a desculpa de Monique por tê-la eliminado; e na fantasia de Royale ela foi ótima nos desafios do AS4 e Monique só a eliminou para salvar sua melhor amiga, Monet.
Pronto, Latrice agora virou uma drag amarga, recalcada, sem talento que nem merecia estar ali. E é curioso notar que quando Monique está brilhando no show, ela também não merece estar ali, mas a partir do momento que confronta Latrice, vira automaticamente a justiceira que o fandom precisa. Nada mais conveniente que duas negras brigando, e assim poder usar uma delas como escudo para ser racista sem medo. É tanto ódio que não cabe num fandom só. E pior, um fandom composto em sua maioria de pessoas LGBTs.
Mas esse ódio tem explicação, pois a mudança de Latrice é uma afronta ao padrão do que é ou não aceitável de uma drag queen negra: ser mãezona, carismática, que tem obrigação de arrasar nas dublagens e que em hipótese alguma ouse afrontar alguma drag branca fanfavorite. Assim foi a passagem de Latrice na quarta temporada e no All Stars 1 de Drag Race, mas como agora ela não desempenha mais esse papel virou alvo de ataques e perseguições.
Sobre o Ruvenge (Episódio 6 do AS4)
Eu não achei nada demais no que Latrice fez ao confrontar Monique. Royale foi chata? Foi, mas está na mesma onda de Gia e Valentina, criando história pra ter tempo de tela. Se não tivesse drama no início no episódio, não teria o ápice final do lipsync de Latrice e Monique. Dá para ver que foi encenado, pois nos momentos finais Latrice dá um abraço em Monique e é perceptível a alegria dela em ver sua “rival” salva. Então não comprei esse ar de vilã que ela passou, mesmo ela tendo sido implicante.
A Jasmine mesmo não entrou na onda de fazer drama e passou apagadíssima pela edição. Gia idem, voltou outra pessoa nesse ruvenge e saiu apagada. Latrice poderia muito bem ter seguido a postura madura de Jasmine, Royale a manteve até o 3º episódio, mas aí não teria tempo de tela. E manas, as drags ganham cachê por episódio. Logo, quanto mais drama, mais tempo de tela, mais tempo na temporada e mais cachê elas recebem.
Por outro lado, muitos que atacaram Latrice por ser vingativa com Monique acharam maravilhoso Farrah Moan, justamente eliminada, confrontar Valentina por tê-la dado sashay away. Coerência para quê não é?
Voltando ao racismo do fandom
Quando Phi Phi O’Hara eliminou Alyssa Edwards no All Stars 2 por ter tido o pior desempenho daquela semana, todos acharam ruim sua decisão e amaram quando Alyssa voltou e eliminou Phi Phi… “A justiça foi feita”, gritaram os fãs. Se ignorarmos o fato de O’Hara ser uma das drags mais odiadas pelo fandom de Drag Race (o que por si só é pura babaquice) e que várias outras drags já reclamaram do comportamento de estrela de Alyssa que Phi Phi também reclamou (falta a eventos, chega atrasada, etc, leia aqui), a queen foi justa em sua eliminação, assim como Monique… Mas Phi Phi é odiada, então merece ser perseguida, ainda mais por barrar a fanfavorite Alyssa, mas aí quando a eliminada é Latrice, o discurso já muda, pois ela virou “a pior drag do show”, logo merece ser perseguida.
Latrice está shady sim, mas que drag não é? Latrice tem sido exageradas em suas reações e auto-percepção e o que isso difere de Trinity sempre dizendo que vai arrasar e que é uma das melhores ali? “Ah, mas Trinity está vencendo desafios e lipsyncs”. Assim como Monique, mas qual das duas é venerada? Uma drag negra shady, empoderada, ótima no que faz e convicta do poder de sua arte, pelo visto, incomoda e muito.