A televisão, por natureza, não tem a obrigação de educar o telespectador, porém, é importante tomar nota de programas que conseguem furar a bolha do entretenimento pelo entretenimento, instruindo as pessoas e, por consequência, colaborando para um mundo melhor. É o caso de Drag Race Thailand.
No dia oito de março de 2018 o ator e modelo tailandês Ananda Everingham participou do episódio quatro desta franquia, o “Drag Race Thailand Debut Season Award”. Até então ele, uma estrela cinematográfica heterossexual com 26 longas-metragens no currículo, desconhecia completamente o mundo drag.
Foi neste momento que Art Arya se deu conta do papel social que o reality teria na Tailândia, onde a homossexualidade só deixou de ser considerada patologia (doença mental) em 2002, apenas 19 anos atrás. Mas a história que agora eu vou contar começa muito antes disto.
Tailandesa com ascendência chinesa, Art-Araya In-dra nasceu no dia 30 de agosto de 1971, em Bancoque, capital da Tailândia. Quando tinha apenas dez anos, em 1981, Art fazia a quarta série do ensino fundamental ao ter um encontro com algo que, anos mais tarde, seria um de seus instrumentos de trabalho. A maquiagem.
Um de seus professores o convidou para dançar em público com um grupo formado somente por meninas. Em comum, algo as relacionava: todas estavam maquiadas. Fascinado pelo que via, pediu à mãe para maquiar-se também. Permissão concedida, este apoio materno seria o que ele mais precisaria tempos depois, porém, não sabia disto.
Em 1988 Art começou a estudar na Universidade de Belas Artes de Bancoque. Ainda durante seu primeiro ano, como parte de um discutível trote estudantil, para dizer o mínimo, organizado por alunos do último semestre, Art foi obrigado a se vestir com roupas femininas para que os outros rissem, afinal, quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor, correto?
De qualquer forma, o que era para ser um episódio lamentável acabou ganhando outro contorno, afinal, se nesta época Art já vivia sua feminilidade, o trote fora fundamental para lhe dar o esclarecimento que precisava ao recordar dos vestidos usados por sua tia e mãe: a paixão pela moda.
Deste ponto em diante Art só comparecia ao campus com roupas de mulheres e seu foco era o mundo fashion. Mais do que mostrar sua firmeza, isto confirma o quanto é uma personalidade à frente de seu tempo, pois não se falava, ainda, de não-binariedade nesta época, mesma fase na qual Art performou, aos 17 anos, a música “Baila”, da banda Les Rita Mitsouko, dentro da programação de sua faculdade.
A escolha de ser ele mesmo mostrou-se certeira porque, ao concluir a faculdade, saiu dela com um diploma e deixou seu nome na boca dos alunos pela maneira autêntica que vivia e se expressava. E assim foi em sua próxima aventura, bem distante de sua terra natal.
Estamos na década de 90, Paris, França. Art saiu da Tailândia para estudar moda. Era uma noite de 1992 quando Supermodel (You Better Work), de RuPaul, tocou na pista de dança do Le Queen. Ao ouvir esta música a Caixa de Pandora – não confundir com Pandora Boxx – de Art foi aberta e ela passou a entender que o que fazia, afinal, tinha nome. Drag, uma arte ocidental que, de repente, virara sua nova obsessão.
Assim, seu namorado deste período procurou Art com um vinil de alguém que ela precisava escutar, pois, segundo ele, tratava-se de uma cantora inovadora, que cantava usando um registro vocal masculino. A artista em questão é a já citada RuPaul, dá para acreditar?
Naturalmente, Art passou a acompanhar RuPaul’s Drag Race desde a primeira temporada. Sobre ele, ela já declarou à imprensa que, entre suas vencedoras preferidas estão Raja, Jinkx Monsoon, Violet Chachki e Sasha Velour. Todo este universo logo, logo bateria à sua porta, mas antes disto Art formou-se em Moda, trabalhou para a Lanvin, multinacional francesa mais antiga em funcionamento na França, e retornou para Bancoque, local no qual atuou como designer comercial e estilista de moda.
Todas estas experiências, de formas distintas, ajudaram a preparar Art para um trabalho inédito para ela até o dado momento: ser jurada do reality show tailandês The Designer, algo bem próximo ao que viria pela frente, em Drag Race Thailand, apresentado ao lado de Pangina Heals.
Para a primeira temporada deste spin-off ela escolheu a dedo todas as dez competidoras, desde o primeiro dia, nas audições. O mesmo ocorreu na segunda edição, na qual Art, devido a compromissos de agenda com a quinta temporada do The Face Thailand, não participou de parte considerável do décimo episódio, justamente o que definiu as cinco melhores do programa, programa este finalmente renovado para uma nova season.
Atualmente, enquanto Drag Race Thailand não retorna à televisão, Art trabalha como diretora criativa da marca tailandesa Theather e também vive a plenitude de seus sete anos de namoro, entretanto, o mais anda fazendo a rainha das rainhas? Você descobre logo abaixo, na íntegra, na entrevista que fizemos para esta Who’s That Queen?
Você estudou arte e design de moda em Bangkok e na França. Como estas experiências ajudaram a formar a artista que você é hoje?
Boa pergunta!
É a primeira de muitas assim, mas continue, Art.
Devo dizer que ajudou muito, ver o mundo de diferentes lados me ajudou a crescer como pessoa e também como artista. Cada lado tem sua própria cultura e mentalidade, especialmente as pessoas, tão diferentes, mas ainda assim se pode aprender com elas. Sendo um artista, deve-se aprender a apreciar o que acontece na sua frente.
Você está na moda há mais de 30 anos. Depois de três décadas neste mundo, deve ser difícil surpreendê-la, então, o que uma drag queen tem que fazer na passarela para lhe deixar de queixo caído?
Não tem nada a ver com anos nem com número, quer dizer, sempre posso encontrar algo para apreciar quando está bem na minha frente. Nada é muito difícil de me surpreender, mas no Drag Race, especialmente quando você é um anfitrião e um juiz ao mesmo tempo, você sobe de nível, cada pequeno detalhe conta. As rainhas têm que nos mostrar suas personalidades, seu senso de estilo, não copiar e colar. Mau gosto ou bom gosto não importam mais, apenas seja você mesma 100% e traga eles na passarela.
Em que momento da sua vida surgiu a proposta de apresentar Drag Race Thailand? O que você estava fazendo quando soube que apresentaria o programa?
A empresa com a qual eu trabalhava na época como diretor de criação trouxe a licença do programa e tentamos encontrar uma apresentadora adequada para ele. Discutimos muito sobre tantas rainhas e não percebemos que eu era uma grande fã do Drag Race muito antes de eles me contratarem para o trabalho, então acabamos me escolhendo porque a direção que queríamos mostrar era trazer moda e cultura para o reality e eu era adequada o suficiente para colocá-los nele. Naquela época eu não estava apenas sendo diretor de arte para esta empresa, mas também fazendo meu trabalho freelance como diretor de moda, consultor, estilista, palestrante e muito mais. Sou uma pessoa hiperativa viciada em trabalho.
Natalia Pliacam e Angele Anang são as duas vencedoras de Drag Race Thailand. O que elas adicionam individualmente à franquia Rupaul’s Drag Race?
Natalia Pliacam foi a primeira rainha plus size a vencer Drag Race e também Angele Anang foi a primeira transgênero a vencer Drag Race. Não aconteceu por questão política nem tínhamos planejado. Foram elas que mais se destacaram no casting, na audição até o final da corrida.
Concordo com você. Fizeram por merecer o prêmio.
Se assistiram mesmo ao programa, todos percebem porque ambas merecem o título de vencedora. E no final da corrida as duas nos mostraram que drag é uma forma de arte que qualquer um pode fazer e apreciar.
Por que a música do top five (Rumix de I Will Survive) não está disponível nas plataformas digitais?
Não sei responder a essa pergunta. Meu trabalho era a apresentação, direção de arte e júri, o resto cabia a outra equipe. Acho que deve ser algo a ver com licenciamento ou lei para a música, não como se não quiséssemos que ela não fosse um sucesso, mas sempre há algo que não sabemos.
Você gostaria de apresentar o programa novamente?
Eu com certeza apresentaria o programa novamente. Eu amo o formato da versão tailandesa, nós a deixamos boa e diferente da original, mas como você disse, infelizmente não temos patrocínio suficiente. E o programa na Tailândia não estava na televisão nacional, apenas no aplicativo Line, que limitava o acesso a ele. Acho que isso poderia explicar porque tínhamos cada vez menos patrocínio, hahahaha!
Mas agora a nova temporada já foi confirmada, o que é ótimo!
Se vocês quiserem nos patrocinar, por favor me avisem. Adoraríamos continuar um dos melhores reality shows da Tailândia. Ainda temos muitas artistas que querem mostrar sua arte drag para o mundo. 10-20 milhões de baht ajudariam, hahahahaa!