Entrar no apartamento de Miss Biá, no Centro de São Paulo, é uma verdadeira viagem ao passado. Os arabescos e bibelôs da decoração remetem ao que ela exalta como “tempos áureos” de glamour da noite paulistana. E não é para menos. Faz 57 anos que Eduardo Albarella – um senhor de 78 anos – sobe nos saltos, coloca peruca, monta os melhores figurinos e capricha na maquiagem para viver a personagem.
Aos 21 anos, Albarella era office boy e morava com sua família no Brás. Foi depois de sair com amigas para assistir a um show em um cabaré na Av. Rio Branco que decidiu se montar pela primeira vez. “Não existia show de transformistas, mas eu fiquei encantado. Aí falei: ‘eu também quero fazer’”.
Foram as mesmas amigas que cederam as peças para a transformação inicial. “Elas me emprestaram tudo. Naquela época eu usava jóias que elas tinham, pois elas eram muito bem posicionadas. Hoje em dia é tudo bijuteria, né?”
A inspiração para o uso do nome Biá, que já era seu apelido, veio de uma música de Carmen Miranda. Já o visual foi uma homenagem à atriz Gina Lollobrigida, que foi sucesso nos anos cinquenta. “Falavam que eu era parecida com a Lollobrigida. E olha como eu era mesmo”, diz mostrando fotos (veja abaixo).
“A gente tinha referências de quem era uma Rita Hayworth, uma Marilyn Monroe e procurava fazer aquilo de uma forma bonita. Ginger Rogers… dançar mais ou menos igual”. Surgia então Miss Biá.
Quando eu cheguei era tudo mato
“Quando comecei não existia dublagem. Então tinha que cantar. Tinha shows montados com músicas especialmente para a gente. Depois o investimento financeiro das casas foi escasseando e a gente foi mudando a maneira de se apresentar”, relembra.
Biá conta que, no ínicio dos anos 60, não existia boates específicas para o público LGBTQ em São Paulo. “A primeira boate em que fizemos show era hétero. O La Vie En Rose, que ficava aqui na chamada Boca do Lixo (no Centro). E lotava, ia todo mundo. Existia a curiosidade de querer ver uma coisa inédita”.
Depois do La Vie En Rose, Miss Biá se apresentou por anos em várias casas como a Medieval e a Corintho. Na Nostromundo ficou conhecida por sua sátira de Hebe Camargo, recebendo nomes como Paulo Autran, Raul Cortez, Regina Duarte, Claudia Raia, Ney Matogrosso e Wanderléia para entrevistas no sofá da boate.
Não é por acaso que Albarella tinha bagagem para impersonar Hebe. Ele trabalhou por quase trinta anos como maquiador e figurinista da apresentadora, profissões que sempre exerceu em paralelo às apresentações como Miss Biá.
“Quando a Hebe foi para a Bandeirantes, eu fiz uma roupa que repercutiu muito. Era Natal, então falei: ‘vou te fazer uma roupa vermelha’. Eu coloquei a perna dela meio de fora… aí o telefone começou a tocar adoidado. ‘Quem fez essa roupa da Hebe?!’”
Sem ter feito cursos de costura, Albarella diz que a experiência dos palcos foi o que ajudou a ganhar projeção como figurinista e estilista. “Você tem uma visibilidade muito boa do que é bonito, do que vai ficar bom. Eu me visto e sei numa roupa o que funciona. Isso tudo quem me deu foi o palco”, diz.
Ditadura e perseguição
Se hoje as drag queens estão por toda parte, fazendo sucesso na TV e se apresentando para o grande público, nem sempre foi assim. A comunidade gay foi duramente perseguida na época da ditadura militar no Brasil.
Mesmo após os anos de chumbo, os transformistas não podiam sair na rua com os figurinos com os quais se apresentavam. “Nós não saíamos assim montadas. Tinha que levar a peruca na mão. Se botasse na cabeça eles prendiam porque achavam que era prostituição”, conta Biá.