Pythio (Peppermint) e seus dançarinos serpentinos em Head Over Heels.
Quando Pythio surge no palco em Head Over Heels, o público explode em aplausos. Isso é em parte para celebrar a estreia na Broadway* de Peppermint, a participante de RuPaul’s Drag Race, e em parte porque nunca houve um Oráculo de Delphi como Pythio. Esse profetizador é feroz, instantaneamente cativante e cercado por dançarinos serpentinos. Quando o rei Basílio (Jeremy Kushnier) e seu servo, Dametas (Tom Alan Robbins), se perguntam em voz alta se o Oráculo é um homem ou uma mulher, Pythio faz uma pergunta que se torna central para Head Over Heels: “Como gênero é pertinente para a discussão?”.
“As coisas precisam ser uma coisa ou outra”, exige Basilius.
“Minhas qualidades transcendem sua opinião grosseira! Pythio é uma pessoa plural não binária”, fala a Oráculo.
Tradicionalmente falando, o Oráculo de Delphi – também conhecido como Pythia – era estritamente feminino. Mas há muita pouca coisa que seja tradicional sobre Head Over Heels. O musical é baseado (livremente) no clássico do século XVI de Sir Philip Sidney, The Countess of Pembroke’s Arcadia [A Condessa da Arcadia de Pembroke]. Jeff Whitty, que ganhou o Tony Award por Avenue Q, e James Magruder, são responsáveis pelo roteiro, enquanto a partitura é composta pelas músicas dos Go-Go’s. Sim, Head Over Heels é um musical jukebox, um gênero ridicularizado pelo uso de músicas consagradas, mas o show como um todo acaba sendo uma das ofertas mais originais da Broadway em anos.
A transformação do Oráculo em um personagem não-binário interpretado por uma mulher negra trans – a primeira atriz trans a originar um papel principal na Broadway – é um passo radical para o teatro tradicional. Embora a Broadway tenha uma reputação de ser inclusiva, a representação queer** tem se limitado em grande parte a homens brancos e homossexuais, com algumas exceções notáveis, como o ganhador do Tony de 2015 de Melhor Musical Fun Home. A representação trans e não-binária, em particular, foi severamente limitada: Shows como La Cage aux Folles e Kinky Boots, embora certamente progressivos na época, retratam homens cis fazendo drag. Head Over Heels é uma raridade em seu retrato do espectro completo da identidade de gênero, especialmente por escalar uma atriz trans (e drag queen) para fazer um papel não-binário.
O enredo, como em Arcádia, segue a tentativa de Basilius de frustrar a terrível profecia da Oráculo – suas filhas, Philoclea (Alexandra Socha) e Pamela (Bonnie Milligan), se apaixonarão por pretendentes inadequados, um mentiroso e o outro um “não homem”; ele e sua esposa, Gynecia (Rachel York), irão (de alguma forma) cometer adultério um com o outro; e sua coroa será usurpada por um rei mais digno. E então as coisas ficam bem “queer”. Philoclea se vê atraída pela guerreira amazônica Cleophila, que acaba sendo o pastor Musidorus (Andrew Durand) disfarçado. E Pamela descobre que nunca desejou um homem, pois ela e sua serva Mopsa (Taylor Iman Jones) declaram seu amor uma pela outra.
Em cada ato, Head Over Heels faz as escolhas mais subversivas, tornando queer um texto clássico do século XVI para um efeito delicioso. Mopsa faz uma rápida viagem a Lesbos (sim, na verdade), onde transforma “Férias” em um novo hino lésbico. E o cross-dressing de Musidorus, ao invés de apenas ser jogado por risadas, inspira um abraço completo de seu lado feminino.
Head Over Heels é seriamente comprometido com uma representação precisa da fluidez sexual e de gênero – os pronomes de Pythio são tratados com respeito, até mesmo estimulando algumas letras atualizadas do Go-Go – ao mesmo tempo que são excepcionalmente tolos. É atencioso, mas nunca didático, um programa que se preocupa tanto em obter representação correta quanto em garantir que o público esteja se divertindo muito. E com um bando de músicas do Go-Go – sério, todas as músicas são ótimas – a última é sucesso.
Na verdade, parte do que torna Head Over Heels tão impressionante é que ele não precisa ser tão inovador e inteligente quanto é. O musical jukebox tem uma reputação de ser preguiçoso e por um bom motivo: a maioria desses shows se baseia na familiaridade do público com o catálogo de um artista, o que significa que ele não sente a necessidade de fornecer muito além disso.
Esses musicais são basicamente biográficos, oferecendo uma versão altamente higienizada da vida do sujeito, como em Summer [musical da Broadway], que encobre as atitudes anti-gay de Donna Summer. Quando eles apresentam histórias originais, como a terrível Escape to Margaritaville, os enredos são desculpas frágeis e transparentes para empurrar o máximo possível de sucessos em duas horas. Você vai a um musical de jukebox para ouvir (e espero que não cante junto) as músicas que você conhece e ama. Mais frequentemente do que deveria, não é mais profundo do que isso.