Nos últimos dias a discussão em torno do comportamento de RuPaul tem sido intensa. Primeiro foi o ocorrido com a The Vixen no episódio do reunion quando ela deixou a sala após Ru tentar ensiná-la que em certas situações é melhor ficar em silêncio, o que chega a ser um tanto controverso quando você pensa em toda a trajetória de Mama Ru até chegar aonde chegou. E se naquele momento Ru acreditou que ninguém poderia fazer nada pela The Vixen, Asia a confrontou dizendo que havia sim algo a ser feito ou dito. Talvez na frente das câmeras, no meio de uma gravação não fosse exatamente a melhor situação para uma longa conversa, mas, mais tarde, The Vixen disse em uma entrevista que Asia, Miz Cracker e algumas outras queens foram conversar com ela e mostrar apoio durante o intervalo ou depois (leia aqui). E RuPaul? Aparentemente não.
Isso nos leva ao outro acontecimento da semana: a carta aberta de Tyra Sanchez para RuPaul (leia aqui). Num texto extremamente sincero, Tyra expôs sua frustração diante do comportamento do apresentador perante as participantes de seu reality show. Ela conta sobre uma vez em que a própria Ru lhe disse para ignorar o racismo vindo do fandom do programa e de produtores folgados, e que passar anos ignorando todas essas coisas não a ajudou em nada. Dentre diversos desabafos, Tyra fala da hipocrisia de pregar que “somos todos uma família” e distante das câmeras não dar a mínima para nenhuma queen, sobre como o programa é tendencioso e principalmente como RuPaul segue ignorando os problemas do fandom esperando que um dia isso desapareça.
Certo! Diante de tudo isso, eu tentei esclarecer algumas coisas na minha cabeça, como fã da arte drag e fã de um reality sobre o tema. O primeiro ponto é esse: ser fã de drag e ser fã do reality são duas coisas distintas. Citando algo que Miz Cracker disse recentemente: se você ama drag queen, então você ama TODAS as drag queens, agora se você ama algumas participantes de um reality e odeia outras é diferente, e tá tudo bem também. Os fãs que são racistas, gordofóbicos, os que fazem ameaças, os que incitam ódio e se divertem atacando drag queens nas mídias sociais não são, em nenhuma hipótese, verdadeiros fãs da arte, mas sim, espectadores cruéis e transtornados de um programa de televisão. E devemos admitir que o programa não faz nada para mudar essa situação. E por quê? Principalmente porque o dinheiro entra no bolso dos produtores de um jeito ou de outro, e instigar drama, criar vilões, seguir um padrão de classe tem funcionado até agora. O racismo é um problema mundial e o programa reflete um comportamento típico de sua audiência majoritariamente fã de queens magras e brancas (como Bob The Drag Queen apontou recentemente em seu twitter, leia aqui).
Quando pensamos nas primeiras temporadas de Drag Race é comum observar que o intuito inicial era promover a arte drag, era satirizar um programa de top models e mostrar ao mundo o poder transformador de uma expressão artística até então entendida como caricata. Foi uma ideia corajosa, acredito que até despretensiosa, que partiu de uma drag queen negra e já famosa nos Estados Unidos, alguém que com muita luta, esforço e trabalho conseguiu seu espaço na televisão. O que RuPaul fez pela comunidade drag é incontestavelmente incrível e graças à marca que ela criou, centenas de queens hoje podem se sustentar exclusivamente da própria arte enquanto outras milhões de pessoas podem sonhar em ter uma carreira na área. Entretanto, desde que foi criado, o programa foi aos poucos evoluindo para um padrão cada vez mais distante do foco humano e mais próximo do esquema de competição. Se antes RuPaul era uma espécie de guru do amor próprio e da receptividade, com o passar dos anos, ela foi ganhando fama de robótica, “holograma”. Parecia que o programa não estava mais em seu controle e isso se evidenciou ainda mais a partir do All Stars 2, quando Ru se absteve da responsabilidade de escolher quem permanece no jogo e entregou a bomba nas mãos das próprias queens, causando excelente drama televisivo, mas inacreditáveis injustiças, mal estar entre elas e ataques ainda mais pesados dos telespectadores. Aqui fica muito claro que o objetivo deixou de ser a exibição da arte drag e se tornou apelação de reality de competição.
Acontece que isso causou desgaste em quem assiste. Acontece também que os anos se passaram e que não só a arte drag evoluiu, como o mundo também mudou, mas o programa continua insistindo na fórmula padrão. Existe pouquíssima discussão sobre visibilidade trans, por exemplo, e nunca se fala sobre bio queens, lady queens, hyper queens, AS MULHERES CIS que também fazem drag e que lutam para validar sua arte num ambiente ainda lotado de misoginia. RuPaul já fez diversas declarações transfóbicas (a ponto de depois pedir desculpas) e insiste em dizer que não admitiria mulheres no programa. Por que não? A arte drag não deveria ser seletiva, e NÃO SERÁ apenas porque RuPaul falou. Novamente: ser drag queen e ser participante de reality são duas coisas distintas, e se RuPaul não aceita certos tipos de drag em seu programa, o problema é do programa que não evoluiu junto com a arte.
Está sim na hora de RuPaul’s Drag Race assumir responsabilidade pelo mau comportamento do fandom, já que o roteiro insiste em causar intrigas cada vez mais forçadas. A season 10 trouxe queens incríveis, talvez o elenco mais amoroso e cheio de questões que já tivemos. Cada uma das participantes se destacou por sua luta e individualidade, nenhuma foi fraca ou trapaceira como jogadora, até quem saiu rápido marcou presença memorável, e ao invés de o foco do reunion ser justamente seus trabalhos e personalidades maravilhosas, foram brigas, traumas e tentativas de atrito. Isso é educar uma audiência a torcer por drama e confusão. E eu não serei hipócrita de dizer que quem assiste não quer ver barraco, porque eu sei que quer sim, eu converso com várias pessoas que me dizem que estão ali “só pelas tretas”, mas isso não deveria jamais se sobressair a arte e a inclusão.