A seguinte cena será familiar para você, caso eu esteja falando com uma pessoa LGBTQIA+: movida pela curiosidade, a criança começa a perceber que o guarda-roupa da mãe não é apenas um objeto inanimado. Na verdade, é um portal para aquele mundo criativo e lúdico no qual ser rei, rainha ou queer, é apenas uma questão de encontrar os adereços e roupas certas, afinal, todos nós nascemos nus, o resto é drag e você pode ser o que você quiser ser.
Neste clima de descoberta e primeiros contatos com a feminilidade, Alexis Michaels começara, por volta dos três, quatro anos de idade, a experimentar o vestuário da mãe. O hábito retornaria aos 13, em 1997, quando ele foi a uma festa de halloween pensando usar uma máscara de Richard Nixon, porém, acabou fantasiado como bruxa.
Tudo isto é natural para Alexis que, além dos flertes com o universo feminino, também passou boa parte da infância assistindo a grandes musicais. Atrizes como Audrey Hepburn, Julie Andrews, Bernadette Peters e Alice Ripley alimentavam sonhos e fantasias que, no futuro, fariam todo sentido para ele.
Nascido e criado no Soho, bairro de Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos, Alexis veio ao mundo em 16 de outubro de 1984. De lá pra cá, colecionou muitas histórias. A maioria delas serão contadas aqui, agora, nesta edição da Who’s That Queen?
Ainda menor de idade, Alexis viveu uma experiência que seria o embrião de sua atual vida: no final da década de 90, ele compareceu a uma festa que aconteceu depois do Wigstock, no Webster Hall. Nela, a drag queen Edie, com sapatos e vestido preto, apresentava-se com dois bailarinos em uma performance de “Son of a Preacher Man”, de Dusty Springfield. Mais do que descobrir uma nova paixão, Alexis percebeu, pela primeira vez, que fazer drag era uma opção. Será?
Questionamentos a parte, a predileção de Alexis por filmes musicais e a fantasia de ser uma mulher como as atrizes que assistia, acabariam sendo sua passagem, só de ida, para o mundo drag, mas o percurso seria difícil, porque sabemos que ninguém faz drag e passa por isto impunemente.
Alexis, até este momento, conciliava diversos trabalhos com uma vida de drag, digamos, “discreta e no sigilo”. Como objetivava uma carreira teatral legítima, temia que seu hobby jogasse contra seus interesses no teatro, portanto, a primeira decisão urgia: como conciliar ambos os mundos?
A resposta viria através de Hillary Clinton: “Fale por aquilo em que você acredita e valerá a pena”. E assim foi: após mais um halloween, em 2003, Alexis faz seus primeiros shows pagos, como drag queen, em locais como o Stonewall Inn e The Monster.
Em meio a agenda que principiava, Alexis teve que ter nervos fortes para passar por 2014, ano particular que lhe marca profundamente: um relacionamento havia terminado e, Charley, seu cachorro e amigo amado, faleceu. Neste caos, drag, uma arte alegre e expressiva, passou a ser a terapia que Alexis se auto receitou.
Coroando esta fase, ela conseguiu adquirir experiência com apresentações semanais ao lado da drag Schwa de Vivre, todavia, seu primeiro grande momento no comando dos holofotes aconteceu ao vencer a quinta temporada do tradicional concurso novaiorquino “So You Think You Can Drag”, em 2014.
Em seguida, já fazendo drag em tempo integral e colhendo os louros pela vitória recente, Alexis se viu sendo muito mais solicitada para trabalhos em Nova York. Só faltava uma coisa: entrar para uma famosa família drag conhecida a nível a internacional.
Alexis era telespectadora fiel de RuPaul’s Drag Race desde sua estreia, em 2009, mesmo ano em que fez audição pela primeira vez para participar do programa, na segunda temporada. Ela tentou novamente todos os anos, ininterruptamente, até conseguir uma vaga na nona temporada, estreada em 24 de março de 2017, gravada no verão de 2016.
Antes do sonho virar realidade, Alexis recebeu uma ligação na qual foi entrevistada pela produção do programa. Neste momento, eles lhe perguntaram sobre algo que ela havia feito quatro anos atrás, em outra tentativa de entrar no Drag Race. Isto confirmou o que dizia sua intuição: os produtores, afinal, estavam de olho nela nestes anos todos de audições.
No caminho para virar uma Rugirl, Alexis garantiu seu ingresso na família na oitava tentativa, através de um vídeo no qual usou referências e falas de filmes icônicos, como “The First Wives Club” (O Clube das Desquitadas), “Dreamgirls”, “Steel Magnolias” (Flores de Aço) e “Mommie Dearest” (Mamãezinha Querida), obras que ela acredita serem do gosto de RuPaul.
Quando teve a confirmação que faria parte do elenco da temporada nove, Alexis não pôde se dar ao luxo de comemorar: era uma sexta-feira, dez horas da noite na costa leste quando ela recebeu um telefonema de Los Angeles. Preparada para um show, entrou em cena guardando o segredo que mais queria compartilhar no mundo.
Horas depois de sua performance, apenas com maquiagem e sem roupas, no sofá de sua casa, Alexis viu uma foto no Instagram com Rugirls fazendo um meet and greet. Foi quando sussurrou para si mesma: “Oh, meu Deus, são minhas irmãs”. De fato, era apenas o princípio do muito que ainda lhe acometeria.
Alexis admite que um dos fatores que atrasaram sua participação no programa foi querer falar o que os produtores queriam ouvir, porém, superado o passado, uma corrida estava marcada e 13 concorrentes desejavam o mesmo que ela.
Safe nas três primeiras semanas, Alexis garantiu seu lugar entre as melhores nos episódios quatro e cinco para, no sexto, finalmente vencer um desafio principal, nada menos que o Snatch Game, com sua Liza Minnelli. Aqui mora uma curiosidade: Liza é a artista que ela mais fez durante seus testes para o show. Toda vez que não conseguia ser aprovada, ela assistia as temporadas e rezava para que ninguém a interpretasse no Snatch Game.
Em seguida, na passarela, a categoria foi “A Night of a Thousand Madonnas, na qual homenageou Breathless Mahoney, de Dicky Trace. Junto a seu look na estreia da season, em tributo a Lady Gaga, e sua performance como Kris Jenner, em “Kardashian: The Musical”, estes são os momentos que Alexis mais aprecia em sua participação.
Próxima de sua eliminação, esta rainha levou a sério a máxima da drag queen Hedda Lettuce: “Se a vida lhe dá limões, faça uma limonada e se adicionar um pouco de vodca a ela, está tudo pronto”.
A partir do episódio sete, um histórico competitivo irregular surge, antecedendo duas dublagens pela vida: “Baby I’m Burning”, de Dolly Parton, contra Farrah Moan; e “Macho Man”, clássico do Village People, com Shantay para Peppermint e Sashay para Alexis, que garante um honroso quinto lugar.
Ao refletirmos sobre tudo isto, é preciso acrescentar o contexto no qual Alexis chegou ao reality show: antes dele, ela já conhecia diversas Rugirls, como Brita Filter e Monét X Change, inclusive participou do show de Bianca del Rio, em Fire Island, em 2014. Dusty Ray Bottoms e Sasha Velour também eram suas amigas e chegaram a competir no mesmo concurso na fase pré-Drag Race.
Mesmo com todas estas conexões, a própria Alexis garante que a equipe de produção do programa toma todo cuidado possível para que nenhuma das drags tenha contato prévio antes do começo das gravações.
Medidas restritivas a parte, Alexis chegou a esta experiência com bagagem cultural e um título: formada no programa de teatro musical da Universidade de Michigan, ela também contou com 13 anos de experiência como drag para passar pela experiência mais difícil de sua vida: gravar o programa.
Antes da estreia do Drag Race, Alexis debutou solo com seu primeiro show de cabaré, “It Takes a Woman”, na primavera, em 31 de janeiro de 2017. Neste trabalho ela já fazia algo que seria constante em sua carreira: música.
No dia 21 de abril de 2017, C.L.A.T, um single colaborativo com Alexis, Peppermint, Sasha Velour, Aja e DJ Mitch Ferrino, debuta nas plataformas digitais. O videoclipe oficial estreou no dia seguinte, 22 de abril. Recomendo que você minimize esta tela, assista ele agora mesmo e retorne para cá, ok?
Quase um ano depois, em 11 de maio de 2018, Alexis lança “Lovefool”, álbum produzido por ela mesma em parceria com Brandon James Gwinn. O repertório apresenta versões classudas, estilo Broadway (onde ela sonha se apresentar), de canções que vão do Blondie a The Cardigans. A faixa título ganhou videoclipe em 17 de maio do mesmo ano, com direção de Assaad Yacoub.
Como você já percebeu, caro leitor, as aventuras musicais de Alexis são naturais e fazem parte de sua personalidade. Influenciada por Freddie Mercury, Leontyne Price, Barbra Streissand e Judy Garland, da qual ela afirma, orgulhosa, ter ‘um vibrato dramático semelhante ao dela, além de uma oitava de diferença vocal’, Alexis também gostaria de ter feito um dueto com Judy na música “Happy Days Are Here Again”. Com o show “Alexis Michelle Sings Judy Garland”, ela conseguiu duas apresentações esgotadas no World Pride.
Fora este feito, Alexis também se orgulha, no campo pessoal, de sua luta contra o peso, batalha de toda uma vida, combatida com treinos e a dieta do metabolismo rápido, de Haylie Pomroy. Mais do que reaprender a se relacionar com a comida, Alexis se deu conta de que todos nós podemos ter uma relação abusiva com os alimentos, assim como temos com outras substâncias, mas é a comida que nos mantem vivos ao final do dia.
Atualmente ‘palhaça, artista e ativista e não faz mal que esteja incrivelmente linda’, Alexis desfruta de uma carreira sólida como drag queen, fortificada com a experiência em RuPaul’s Drag Race, afinal, foi ele que lhe garantiu ser drag em tempo integral e viver unicamente para a arte.
Na televisão o público descobriu que Alexis, cuja avó é romena, faz parte do judaísmo, embora a mesma se considere espiritual, não religiosa, mas muito judia culturalmente. Anos antes, ia aos serviços religiosos nas noites de sexta-feira.
Fora do campo espiritual, Alexis Michelle, “aquela que pode ser a amante do senador”, sonha ter em sua plateia a atriz Shannen Doherty. Um desejo compreensível para quem caminha para o décimo oitavo aniversário como drag, a ser comemorado neste ano.
Agora eu poderia lhe contar que a nossa musa do metrô, apresentadora do “Dragnificent!”, com Bebe Zahara Benet, Thorgy Thor e Jujubee, é prima biológica da cantora Lisa Loeb e mãe drag de Jan, da temporada 12 de RuPaul’s Drag Race, certo? E que, aos 37 anos de idade e 17 como drag queen, ela vive a melhor fase de sua vida, mas vou parar por aqui e deixar que a própria Alexis fale. Confira logo abaixo, na íntegra, a nossa entrevista.
Desde a segunda temporada de RuPaul’s Drag Race você fez testes para entrar no programa. O que funcionou na oitava tentativa?
Penso que o que diferiu na minha 8ª audição para a temporada 9 foi que finalmente acho que a abordei como: “Isso é quem eu sou, isso é o que eu tenho para oferecer, é pegar ou largar”. Isso e ver o nosso próprio vídeo de [inscrição] para o Drag Race todos os anos é uma grande medida do nosso próprio progresso, e sei que os produtores viram muito crescimento da minha parte ao longo dos anos.
Interessante você analisar a sua própria evolução e crescimento, Alexis. Como estamos falando de televisão, e o seu programa?
Dragnificent! é um programa não só digno de ser assistido, mas até de investir. O que realmente ele ilustra é como as ferramentas que usamos em drag (cabelo, maquiagem, estilo, desempenho) são realmente apenas um meio de sentir e possuir o seu poder, beleza e força que pode você levar consigo, mesmo depois de o drag ser removido.
Eu senti isto ao ver o reality e recordo até hoje do primeiro episódio, exibido quase um ano atrás, em 19 de abril de 2020.
E esta é uma mensagem inestimável com a qual cada pessoa pode aprender e crescer.
Vamos mudar de assunto: já ouvi muitas vezes “C.L.A.T.”, sua estreia musical, com Peppermint, Sasha Velour, Aja e DJ Mitch Ferrino. Como foi o processo de composição dos seus versos?
O processo de criação de C.L.A.T. começou com cada uma de nós decidindo que coisa singular realmente trazemos ao nosso drag ou uma característica determinante. A partir daí escrevemos as letras para o refrão e depois, se bem me lembro, Mitch criou uma batida e escrevemos os nossos versos separadamente para caber na música e juntá-los. Foi divertido trabalhar com as minhas irmãs de Nova York da temporada nove.
Você é uma das Rugirls que já lançou um álbum, no seu caso, “Lovefool”, disponível desde 11 de maio de 2018. Quase três anos após o lançamento deste trabalho, qual análise você faz dele hoje?
Eu amo meu álbum de estreia Lovefool. Sempre sonhei em estar na Broadway e isso se sentiu muito como uma coleção de música que uma atriz da Broadway lançaria. Ele me lembra de muitos álbuns que escutei crescendo feito por minhas divas favoritas da Broadway. Ele também me deixa com fome para gravar um novo álbum.
O que fez você escolher Lovefool como o primeiro single? E a gravação do videoclipe? Ocorreu tudo como esperado ou foi mais difícil do que pensava?
A produção do seu próprio álbum é um enorme empreendimento de seleção, gravação, financiamento e criação de um vídeo ou vídeos para acompanhar a música. Grande parte foi um sonho realizado, especialmente tornando-se um artista da Broadway. Escolher a faixa-título foi relativamente fácil porque as músicas todas são relacionadas com o amor e eu sempre me senti como uma tola por amor [tradução literal do nome do disco].
A nova geração não conhece Liza Minnelli. Quais são as músicas perfeitas para conhecer seu trabalho musical?
A maioria dos jovens, se eles conhecem Liza em tudo, só a conhecem como ela é agora, mas houve um tempo em que ela era uma das maiores estrelas do mundo. Se você não a conhece, assista Cabaret [musical, romance] e o show de TV ‘Liza With a Z’. Eles foram feitos no mesmo ano e este foi o auge de seu estrelato.
Curioso: Liza With a Z também foi indicado por Kasha Davis quando a entrevistei, no ano passado e pode ser lido aqui. Ainda falando de música: se você pudesse formar um grupo pop de garotas com mais quatro drag queens, quem você escolheria e por qual motivo?
Eu nunca estaria em um grupo pop, risos! Mas se eu tivesse que estar eu começaria com as minhas bonecas do Dragnificent!: Juju, Thorgy e Bebe. E adicionaria Symone porque eu a amo.
Como estamos no final, me diga, Alexis: a arte pode entreter, mas nem sempre o entretenimento é artístico. Como a sua drag lida com esses limites?
Eu sou uma artista performática. Eu combino minha arte de atuar, cantar e dança/movimento como a marca registrada do meu drag, ajustado com a arte visual de maquiagem, design de cabelo e fantasias, e tudo isso me faz a rainha que eu sou, então, eu não me sinto limitado pela forma como um todo.
Obrigado pelo seu tempo, rainha.
Sim, querido, obrigado a você!
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