O caminho para a mudança foi longo, afinal, foram 11 temporadas americanas de RuPaul’s Drag Race e mais quatro do spin-off All Stars para que uma drag queen quebrasse o padrão de vencedoras desta competição.
A responsável por este feito é Angele Anang, primeira mulher trans a vencer uma versão do show, neste caso, a segunda temporada de Drag Race Thailand, exibida de 11 de janeiro à cinco de abril de 2019.
Na segunda franquia estrangeira do reality drag mais afamado de todos, esta rainha fez jus a sua frase de entrada: “Essa é a Angele. Prepare-se antes de ir para o inferno”. Suas concorrentes sabem bem.
Em sua passagem pelo Drag Race Thailand, Angele superou a si mesma e outras Rugirls: suas seis vitórias em desafios principais não me deixam mentir. Destas, cinco foram consecutivas. No episódio sete ela abocanhou tudo: mini e maxi desafio. Quando não ganhou, esteve uma vez entre as melhores e duas vezes salva.
Mesmo estreando no bottom, Angele levou à risca o lema de levantar e dar a volta por cima: duplo Shantay com Kana Warrior, no episódio nove, e outro Shantay, porém individual, quando dublara contra Bandit e Vanda Miss Joaquim, o que lhe garantiu seu bilhete premiado para a grande final.
Sabemos que a vitória de Angele é a vitória de uma parcela da comunidade LGBTQIA+, especificamente daquela que, infelizmente, costuma ser liquidada quando falamos de cultura drag. A letra t, claro. T de transexual. Foi se identificando com ela que Angele chegou mais longe ainda: é dela o posto de primeira pessoa trans a vencer um reality show internacional.
Até aqui, nada disto é uma surpresa para você, caro leitor, mas vamos fazer uma pausa para reflexão, dois pontos: afinal, como foi a jornada de Angele até o momento atual? É o que você descobre nesta edição da Who’s That Queen?
Nascida no dia 24 de setembro de 1994, em Nakhon Ratchasima, com o nome de Noporn Junnuan, Anchalee Pokinwuttipob tem uma vida que facilmente viraria uma cinebiografia, dadas as situações e vivências que colecionou até aqui.
Quando tinha cinco anos de idade, em 1999, a mãe de Angele lhe levou a uma loja por conta de seu aniversário. Na época um menino, ela contrariou o senso comum e escolheu um conjunto de cozinha no lugar de brinquedos associados ao sexo masculino, como carros e robôs.
Criança tímida, Angele sofreu dilemas que jovens da comunidade LGBTQIA+ costumam passar na infância, principalmente aqueles nos quais elas chegam a cogitar relacionamentos heterossexuais.
Na escola, despertou o amor de uma colega de classe que, apesar de ser linda, obviamente não fazia seu coração bater mais rápido. Isto Angele só viveu mais à frente, quando se apaixonou por um aluno. A notícia se espalhou e, nas voltas que o mundo dá, a ex-namorada de Angele começou a namorá-lo. O que era para ser um momento triste lhe trouxe a clareza necessária: foi neste ponto que ela deixou, simplesmente, de se importar com a opinião alheia.
Por volta dos nove anos de idade, na terceira série do ensino fundamental, Angele vivia com seus pais em Ayutthaya, cidade próxima a capital da Tailândia, Bancoque. É nesta fase que ela começa a se sentir mulher e o primeiro grande porém de sua vida surge: filha mais velha de um ferreiro, seu pai custou a apoiá-la.
Junto ao relacionamento paterno delicado, Angele tinha uma situação particular no ambiente escolar: o mundo acadêmico no geral, e a matemática, especificamente, não a atraíam. Ela queria estar nos eventos, se apresentar, sonhava em ser dançarina, entreter as pessoas e, claro, celebrar com suas amigas.
Neste contexto surge a única pessoa que sempre a incentivou, desde o princípio: sua mãe. Responsável pela ajuda emocional e financeira, ela custeou fantasias, maquiagem e um professor para aperfeiçoar as habilidades de Angele, além de ajudar com eventos do colégio e até mesmo lhe incluir nas festas do seu local de trabalho. Fã da filha, chegou a dançar, no palco, com ela.
De fato, a mãe de Angele contribuiu para que a infância dela fosse mais leve e feliz, porém, isto não impediu que traumas acometessem sua vida. No campo familiar, seus pais protagonizaram diversas brigas, o que resultou no divórcio deles. O pai saiu de casa e começou uma nova família. Angele ficou com a mãe, mas o pior ainda estava por vir…
Em um grande golpe do destino, a mãe de Angele teve câncer de mama e, infelizmente, faleceu. Aos 15 anos de idade, no primeiro ano do ensino médio, ela teve que conhecer o luto, uma família e casa novas, experiências que lhe marcaram profundamente.
A relação com a madrasta não era boa. A adaptação a nova escola, pior ainda. Em meio ao caos em que vivia onde não conseguia se encaixar, Angele só descobriu uma coisa boa: a internet. Através dela arrumou um namorado. Neste período, além de trabalhar com o pai em sua oficina mecânica, ela também “tentou” ser um homem para o seu parceiro, o pai e todas as demais pessoas, mas em breve perceberia que esta decisão seria paga com um preço alto.
Esgotada, Angele termina seu relacionamento e, frustrada, abandona a escola aos 15 anos. A partir daqui ela deixa o cabelo crescer, não esconde mais a própria feminilidade e passa a trabalhar em um bar de karaokê que, obviamente, seu pai não aprovava de forma alguma.
Três anos depois, aos 18, Angele conhece uma palavra que revolucionaria sua existência. Chama transgênero. Mais consciente de si, ela foge de casa durante a noite para ser uma showgirl no Cabaré Calypso, de Bancoque, local no qual trabalhou durante três anos, todos os dias. Para esta era, Angele colocou silicone nos seios. E as mudanças não param.
Ainda neste período, Angele começa a fazer impersonator de Beyoncé, o que lhe dá popularidade no trabalho, principalmente entre o público japonês e farang, mas não entre os chineses, que se tornaram a principal plateia do teatro que Angele trabalhava. Independentemente disto, é curioso notar a forma como esta cantora pop entrou no mundo de Angele.
Ainda muito jovem, ela estava escutando a rádio quando tocava “Irreplaceable”, de Beyoncé. Sem entender a letra da música, Angele se encantou com a harmonia. O mesmo aconteceu anos depois, quando fora lançada “If I Were a Boy”. Até aí tudo bem, mas Angele ainda não sabia qual cara Beyoncé tinha ou como ela era. Isso só foi descoberto quando as Wonder Girls concederam uma entrevista na qual disseram que eram influenciadas por… Beyoncé.
Antes de chegar este momento, Angele, por influência deste grupo, tinha o hábito de esfregar sua pele na areia para ser branca como eles. Ao descobrir que sua musa é negra, um novo universo se abriu, porém, que não se restringe a uma artista só: Toni Braxton, Brandy, Solange, Mary J. Blige e Nina Simone são outros nomes que fazem sua cabeça. Descobrir pessoas como estas lhe fez perceber que existe representatividade na Tailândia para asiáticos que não são brancos, por sua vez, uma maioria na imprensa e publicidade tailandesas.
Enfim autônoma para fazer o que bem entender como drag queen e showgirl, em 2018, cansada de se repetir, Angele desiste de seu trabalho no teatro para tentar outras possibilidades. Participando de concursos em bares e projetos na televisão, ela passa a viver outras personagens e começa a adquirir experiências que lhe ajudariam na próxima grande aventura de sua vida: Drag Race Thailand.
Angele ficou sabendo do programa através das redes sociais. Segundo ela, tudo aconteceu conforme suas expectativas, apesar dos prazos curtos para os desafios, a competitividade natural entre as drags e a pressão que um reality show carrega consigo, a experiência valeu a pena: nela, a roupa do tema “comida tailandesa” é sua passarela preferida, para a qual costurou todo o vestido à mão, além de fazer o acessório de cabeça e uma maquiagem no mínimo memorável.
Indo mais além na competição, Angele cravou seu nome na história com a performance que fez no último episódio da temporada. Com a cabeça raspada, seu pai na plateia (que nunca havia visto a filha performar) e ao som de “Kwarm Chuea (Belief)”, de Bodyslam, uma música que fala sobre lutar por seus sonhos, não importando as dificuldades, ela fez por merecer o título de segunda drag superstar da Tailândia.
Em uma performance densa e poética, com dramaturgia definida, Angele entregou ao público um número que, mais do que artístico, é um retrato real de uma fase onde ela abusou de drogas. Tudo começou com seu sucesso precoce no showbiz. Depois dele vieram as festas e na sequência as drogas.
A situação saiu de controle e Angele já não conseguia mais nem trabalhar devido a dependência química. Seu pai a pegou pelo braço e lhe levou para a reabilitação. Após a desintoxicação ela virou monja por um tempo rápido. Nada tão estranho, afinal, Angele estudara, na juventude, no internato Santi Asoke.
Saindo da vida monástica para a vida artística, Angele sempre alimentou o sonho de ser atriz de cinema. Fã de filmes históricos, biográficos e dramas, ela espera conseguir atuar em um papel importante para a comunidade trans, ampliando o alcance de suas pautas. Paris is Burning, Dreamgirls, Burlesque, Moulin Rouge e Showgirls são seus filmes preferidos, ao lado da série Pose.
Fora do mundo da atuação, Angele é maquiadora e drag queen desde 2011. Performer? Por uma vida toda. O irônico é que ela nunca se imaginou como drag e foi justamente drag que lhe levou, por exemplo, pela primeira vez a cidade de Nova York, em 2019.
O sonho começava e acabava com a ideia de Angele ser dançarina ou, vá lá, caso tudo desse errado, algum cargo burocrático na atual fábrica de engenharia do pai. Mas não, deu tudo certo, viu?
Hoje em dia Angele virou uma versão bem mais rebuscada de si mesma, como pessoa e profissional. A artista que é atualmente transita em diversas plataformas, gosta de performar músicas em idiomas que vão do filipino ao russo, passando pelo chinês e espanhol e, mais importante do que tudo isto, ama se desafiar e servir como inspiração para as pessoas. É por este motivo que disponibilizei, na íntegra, a entrevista logo abaixo. Confira!
Adoro a coincidência de que a sua temporada estreou em 11 de janeiro de 2019, meu aniversário. Já se passaram dois anos. A vida pós Drag Race Thailand é boa?
Sim. É boa. As pessoas ainda me reconhecem, embora já tenham se passado dois anos. Eu sinto que fizemos história.
Também sinto o mesmo, especialmente sobre você, afinal, dizem que o sonho de toda rainha é que ela seja a última a ser coroada, encerrando uma dinastia. Considerando que Drag Race Thailand não terá uma terceira temporada, como você lida com o fato de ter que reinar eternamente?
Eu não me sinto bem com isso. Na verdade gostaria que pudéssemos ter mais temporadas de Drag Race Thailand porque eu acho que o mundo precisa ser mais reconhecido pela diversidade LGBTQIA+ e queer, especialmente na Ásia. E eu sei que todo fã quer o mesmo, mas o que vai acontecer no futuro você nunca sabe.
Eu realmente preciso falar sobre sua performance musical com o top 5. Como foi este dia? Quais são as suas principais memórias? Acho muito triste que a música não esteja disponível até hoje nas plataformas digitais. Você sabe por quê?
Isso está disponível tudo por aí. Eu não sei, porque você sabe que na verdade essa música mudou muito em relação à linha original que escrevi, então, de alguma forma eu não me sinto realmente participando da música, mas estou feliz que vocês gostem.
Os seus versos me dão vida: “I may appear as Beyoncé, but this is me, Angele. Bitchy, beauty, quality. I am the one that you can’t be. I am the girl that you wanted. I am the queen that you needed. Right here, right now, and that’s my crown. Get out of the way or you’ll be slay”.
Bem, no dia em que filmamos o videoclipe estávamos tão exaustas (é por isso que minha maquiagem ficou tão terrível) porque não tínhamos dormido. A proposta era de escrever essa música e fazer um vestido de elefante no chat do grupo.
Lembro bem desse episódio: você dublou contra Bandit e Vanda Miss Joaquim. Seu segundo e último lip sync.
Então, no primeiro dia, gravamos a música no estúdio e depois fomos para outro estúdio pra fazer o vestido. No segundo dia tivemos que usar a mesma roupa do primeiro dia para ir ao ensaio no teatro fazer um videoclipe e depois fizemos a maquiagem e filmamos o videoclipe no mesmo dia.
Nunca poderia imaginar que o primeiro Rumix tailandês tivesse sido feito assim. Admito.
Terminamos tão tarde que não deu tempo de voltar ao estúdio para finalizar o vestido naquela noite. E aí tivemos que levantar de manhã cedo para ir ao estúdio filmar a entrada do episódio e escrever a cena da música com a mesma roupa de dois dias atrás e terminar o vestido para andar na passarela pra dublagem pela sua vida. O episódio é uma das memórias mais loucas da minha vida.
Depois dele tivemos a reunião e nosso próximo assunto: até hoje meu coração bate mais forte quando vejo sua performance na final de Drag Race Thailand. No dia da gravação ocorreu tudo como você imaginou?
Foi tudo como eu imaginei. Tivemos duas semanas para criar o show e o vestido para a passarela pela vida depois de filmar esse episódio. Eu queria quebrar a mesa, pois fui a primeira rainha a performar.
E você conseguiu. Como aconteceu o processo de criação?
Surgiu a ideia de contar minha história quando estava em uma motocicleta. Tive muita energia para tornar o show tão vital quanto eu imaginei, tanto quanto posso. Fomos tão abençoadas por termos tido equipes muito talentosas. O time de dança com os trajes da equipe de LED. Meu último vestido de robô na passarela foi feito com minhas irmãs transgênero a partir da minha ideia. Estou tão feliz que tudo aconteceu tão perfeito no dia, embora tivéssemos feito o ensaio real no palco um dia antes.
Uma mulher trans vence o reality show competitivo de drag mais famoso do mundo. Qual é a mensagem por trás disto?
Eu acho que a mensagem é que eu nunca signifiquei ou tentei expressar que transgênero é a ideia original de drag. Eles se libertam por quem são e automaticamente libertam os outros também.
Se você pudesse formar um grupo pop de garotas com mais quatro drag queens, quem você escolheria e por qual motivo?
Bem, se eu puder fazer esse grupo é claro que eu gostaria de escolher alguém com quem eu me sinta confortável para trabalhar. Eu escolheria Zymone (rapper trans), Zepee e Kcher porque eu quero que a imagem do grupo seja “garota”, por isso todas essas rainhas transgênero com um trabalho muito dedicado e todos esses talentos que eu conheço e porque estamos no ano do cão, acho que poderíamos nos dar bem e nos divertiríamos com a nossa arte. Não queremos que a música seja muito séria, certo?
Exato. Estamos falando de drag music, também precisa ser divertido!
E a última participante nós precisamos fazer o teste primeiro.
Adorei a formação do grupo. Já que estamos falando de transexualidade: aqui no Brasil a transfobia, infelizmente, acontece muito! Por que você acha que os corpos trans incomodam tanto as outras pessoas?
Eu acho que elas têm ciúmes por sermos tão livres sobre quem somos, não ligando para o padrão das outras pessoas, sexo masculino ou feminino. Você veria que algumas pessoas que são amigas de transgêneros ou LGBTQIA+ têm uma personalidade diferente ou a visão de mundo é tão diferente quando comparada com as pessoas que não têm. A mente aberta, o tipo de coração, a compreensão e a humanidade.
Concordo com você e, como estamos chegando ao final, Angele, quero me diga o seguinte: qual é a realidade enfrentada pelas mulheres trans que fazem drag na Tailândia? Está tudo mais difícil para vocês por aí?
Não, não, de jeito nenhum porque aqui foi obviamente administrado por transgêneros antes. Na indústria do show, no clube, no evento no teatro. E as pessoas apreciam e se sentem gratas por nós. Nós somos tão abençoadas.
Muito bom saber disso tudo. Obrigado pelo seu tempo, Angele. Beijos brasileiros!
Muito obrigada a você. Eu adorei!
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